Antirracismo? Matemáticas Negras na pauta
Vivemos um momento em que a emblemática frase da ativista negra norte americana Angela Davis “Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista” se tornou pano de fundo de uma (pseudo) bandeira internacional de combate ao racismo.
A popularização da pauta em várias partes do mundo ganhou força após o assassinato do norte americano negro George Floyd, covardemente sufocado por um policial branco nos EUA, que desencadeou uma onda de protestos em todo o mundo contra o genocídio negro.
No Brasil, a violência policial contra a população negra não é novidade. Nomes como João Pedro Matos Pinto (14 anos), Kauan Peixoto (12 anos), Jenifer Silene Gomes (11 anos) e Ágatha Vitória Sales Félix (8 anos) fazem parte das estatísticas da violência policial diária sofrida por muitos “outros” e “outras” que tiveram seus nomes e sobrenomes camuflados por estatísticas que não surpreendem mais. Não é só a brutalidade policial que mata. A morte se inicia muito antes da morte física. Se inicia com o olhar de desumanização e descaso muitas vezes não dado a um animal de estimação. Miguel Otávio Santana da Silva (5 anos) morreu ao despencar do 9º andar de um prédio em Recife, depois de ter sido abandonado a própria sorte dentro de um elevador pela patroa branca da mãe – empregada doméstica que, trabalhando, andava com os cachorros da casa. Pessoas negras em espaços predominantemente brancos são bem vistas quando estão caladas, comportadas, subservientes. Marielle Franco (38 anos), vereadora eleita do Rio de Janeiro, mulher, negra, lésbica, mãe, e com muitas identidades que a definem mas não a resumem, pagou com a própria vida o preço por não se calar.
Mas, apesar da comoção e sentimentos de solidariedade serem importantes, é preciso entendermos criticamente como nosso posicionamento individual e coletivo – como comunidade matemática – perpetua estruturas, instituições e práticas que normalizam o racismo, o patriarcado, a homofobia e outros sistemas de opressão que açoitam vidas negras.
Iniciamos nossa reflexão pela invisibilidade – uma forma de violência – imposta a nós mulheres negras na matemática (e em outras áreas das ciências exatas). Guiada por valores da branquitude que posicionam o homem branco como único criador legítimo de conhecimento, a comunidade matemática em geral não reconhece as diversas maneiras que mulheres negras contribuem ativamente para o avanço dessa ciência. Contribuição essa que se dá não apenas através da pesquisa, mas também da dedicação ao ensino, extensão e cargos administrativos. Não podemos deixar de mencionar as mulheres negras babás, empregadas domésticas e secretárias, que historicamente subjugadas a servitude, trabalham nos bastidores cuidando das crianças, das casas e escritórios, permitindo assim que membros da comunidade matemática cumpram com uma longa jornada de trabalho e dedicação exclusiva à academia – demandas que estão baseadas, historicamente, nas possibilidades da elite branca masculina.
Para as poucas de nós que passamos por sistemas de seleção e ingressamos nos espaços matemáticos seja na graduação ou pós-graduação, enfrentamos o racismo, o sexismo, o elitismo, a homofobia, a intolerância religiosa, e tantas outras formas de discriminação que existem nas salas de aula, nas reuniões, nos laboratórios, nos congressos, nas decisões de bolsas e na insistência em marginalizar as nossas vozes. Pesquisas recentes indicam que professor@s, estudantes, colegas, e funcionári@s perpetuam, conscientemente ou não, essas práticas discriminatórias que para além de reduzirem nossas possibilidades de permanência e avanço profissional, interferem no nosso direito de viver plenamente¹. Hoje, graças ao trabalho incessante de feministas negras como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Nilma Lino Gomes e tantas outras (ver Santana, 2019)², temos ferramentas teóricas e metodológicas para entender que tais práticas são normalizadas por sistemas que nos desumanizam e protegem pessoas privilegiadas pela branquitude.
Nós, mulheres negras matemáticas, estamos confiantes que para que a luta antirracista seja efetiva precisamos refletir criticamente sobre os privilégios que a branquitude produz e como beneficia – quer queiramos ou não – muit@s membros da comunidade matemática. Não estamos falando somente do privilégio de ocupar majoritariamente as posições de poder dentro e fora da matemática. Esse pacote de vantagens inumeráveis inclui o privilégio de negar o racismo mesmo com tantos índices sociais que nos mostram o contrário; o privilégio de ser vist@ como vítimas e não criminos@s; o privilégio de encontrar, sem nenhuma dificuldade, livros para suas crianças que representam positivamente seu grupo racial e cultural; o privilégio de ir e vir sem temer uma abordagem policial; o privilégio de ter um bom relacionamento com a polícia; o privilégio de se desracializar e aprender sobre raça e racismo por terceir@s;o privilégio de consumir mídia – TV, revista – que promovem padrões eurocêntricos brancos de comportamento, beleza, e cultura; o privilégio de entrar numa sala de aula e não se sentir, e nem ser vist@, como um@ impostor@; o privilégio de escapar dos estereótipos negativos que inferem na individualidade; o privilégio de correr na rua com tranquilidade; o privilégio de fazer compras sem ser seguid@; o privilégio de usar o cabelo natural sem medo das repercussões; o privilégio de praticar suas religiões; o privilégio de expressar emoções sem ser estigmatizad@; o privilégio de deixar suas crianças no cuidado de mulheres negras sabendo que estarão bem cuidadas e vivas quando retornarem; o privilégio de ser, em primeiro lugar, considerad@ um ser human@. Sabemos que muitos dos privilégios citados acima são na verdade direitos. Mas também sabemos que, dentro de uma sociedade fundada na branquitude, tais direitos se tornam privilégios de poucos.
Concordamos que o posicionamento discursivo das comunidades matemáticas contra o descaso com vidas negras é necessário, mas insuficiente para demonstrar compromisso verdadeiro contra o racismo e outros sistemas de opressão. Precisamos de práticas, políticas e estruturas que demonstrem tal compromisso. Precisamos de passos concretos que nos guie em direção a justiça racial – dentro e fora da matemática. Nós, mulheres negras na matemática, estamos dispostas em participar desses esforços. Nesse sentido, oferecemos a seguir algumas possibilidades de ação sem a pretensão de que elas resolvam todos os problemas mas como um alerta de que não podemos mais nos esconder atrás da ilusão de ‘que não sabemos o que fazer para mudar’.
– Engajamento genuíno e constante em reflexões individuais e discussões coletivas para entendermos o nosso papel na perpetuação do racismo, patriarcado, elitismo, homofobia, e outros sistemas de opressão;
– Eliminar processos de seleção nos mais diversos níveis que ignoram a realidade coletiva da população negra no Brasil;
– Implementar serviços de suporte acadêmico, financeiro, social, e emocional para atender as necessidades específicas de estudantes negr@s;
– Implementar programas de desenvolvimento profissional e estudantil para educar professor@s, estudantes, e funcionári@s na vasta literatura que denuncia o racismo, o sexismo, e os outros “ismos” do Brasil;
– Viabilizar a denúncia de assédio moral e sexual de estudantes negr@s (de forma anônima), assim como um atendimento e suporte psicológico especializado;
– Implementar sistemas de punição para tod@s aquel@s que perpetuam violência racial, de gênero, etc;
– Utilizar conhecimentos matemáticos como ferramenta contra a opressão – econômica, física, social, e outras – de pessoas negras seja desenvolvendo tecnologias, ensinando matemática para justiça social, entre outros;
– Utilizar conhecimentos matemáticos como ferramenta de preservação das vidas negras na área da saúde, trabalho, educação, lazer e outros.
Declaramos, sem hesitar, que Vidas Negras Importam! Continuaremos a lutar e unir forças com quem estiver comprometid@ com nossa causa, para que nossas crianças tenham como direito o que hoje é tido como privilégio, e para que possam ter vidas plenas, dentro e fora da matemática.
Grupo de Matemáticas Negras
14 de Junho de 2020
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- Ver Referências.
- Vozes insurgentes de mulheres negras: do século XVIII à primeira década do século XXI, organizado por Bianca Santana.
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Referências
Silva, G. H. G., & Powell, A. B. (2017). Microagressões no ensino superior nas vias da
educação matemática. Revista Latinoamericana de Etnomatemática, 9(3), 44-76.
Rodrigues, V.; & Sito, L. (2019). “Eu, cientista?”: trajetórias negras e ações afirmativas na
UFRGS. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, 11(edição especial),
207-230.
Rosa, K. (2019). Race, Gender, and Sexual Minorities in Physics: Hashtag Activism in Brazil. In
Pietrocola, M. (Ed), Upgrading Physics Education to Meet the Needs of Society (pp. 221-238).
Cham: Springer.
Silva, G. H. G. (2019). Ações afirmativa no ensino superior brasileiro: caminhos para a
permanência e o progresso acadêmico de estudantes da área das ciências exatas. Educação
em Revista, 35, 1-29.
Souza, C. R., da Cruz, A. C. J., Pierson, A. H. C., & Verrangia, D. (2019). Identidades,
pertencimentos e as ciências exatas e tecnológicas. Revista da Associação Brasileira de
Pesquisadores Negros, 11(edição especial), 252-282.
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Referências
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UFRGS. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, 11(edição especial),
207-230.
Rosa, K. (2019). Race, Gender, and Sexual Minorities in Physics: Hashtag Activism in Brazil. In Pietrocola, M. (Ed), Upgrading Physics Education to Meet the Needs of Society (pp. 221-238). Cham: Springer.
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permanência e o progresso acadêmico de estudantes da área das ciências exatas. Educação em Revista, 35, 1-29.
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pertencimentos e as ciências exatas e tecnológicas. Revista da Associação Brasileira de
Pesquisadores Negros, 11(edição especial), 252-282.